segunda-feira, janeiro 31, 2011

[resumo, 3]

Não temias nenhuma dessas feridas
quase desejavas a cicatriz

quando nos dói
é bom haver uma marca no corpo.

[resumo, 2]

Sejamos claros: escrevemos poesia
para ficarmos às escuras.

[resumo, 1]

Estou quase como o Tjorge: Sá antologia
dá Sírio não reparou em mim
quexe cossxa: o problema
é deis:
a posteridade lá estás.
Mas por mim não mer’ ciam um artigo na Lerque
nem lhes dava de vaia.

domingo, janeiro 30, 2011

[do estado da arte. ou dos lentos progressos. excerto.]

Mas assim se passaram as coisas. E apenas quatro passageiros seguiram na camioneta da carreira que saiu às três e cinco do Largo do Toural: dois pides e dois conspiradores contra a segurança do Estado. Na tarde sentia-se a rarefacção do ar, um silêncio que era muito mais que a ausência de som, a imobilidade dos objectos de família poisados nas cómodas velhas. A camioneta da carreira descia a Rua Vinte e Oito de Maio como se prosseguisse numa cápsula de vácuo e como se as mulheres debruçadas às janelas e os homens parados à porta da barbearia, e os cães adormecidos no quelho das Casas do Canto, e os gatos estirados na varanda da ourivesaria, e os pássaros escondidos nos ramos densos dos abetos do jardim, estivessem já fixados nos sais de prata das fotografias.

Também lá dentro, nos bancos da frente, não se ouvia o ruído do motor nem o chiar dos eixos de um carro de bois que se arrastava pela estrada do Noro, não se ouvia uma palavra, não se percebia a mais ligeira oscilação da viatura. E foi então que o pide número um moveu a cabeça e depois aproximou o rosto da janela e viu que um homem voava sobre a Vila, vagaroso, ausente, distante, na tarde que de súbito se sobressaltou com o voo de todos os pássaros até então escondidos nos abetos do jardim dos Correios. Tirou os óculos escuros, encostou o nariz ao vidro embaciado, o barulho do motor da camioneta da carreira misturou-se ao tumulto das aves a esconder o céu. Fixou o olhar. Mas se alguém voava sobre a Vila, sobre o quadriculado da Veiga, sobre as encostas de urze e pinheiros bravos, acabara de desaparecer por entre a sombra escura que descia sobre as ruas e os telhados.

sexta-feira, janeiro 28, 2011

[O meu candidato]

BEM CERTO é que uma coisa puxa outra e as conversas são como as cerejas. Estávamos a falar dos resultados das eleições e o meu amigo recuou um pouco mais de um ano para trazer à baila esse fim de tarde mágico em que o glorioso benfica venceu o everton por cinco golos sem resposta. Ainda hoje os ingleses devem acordar a meio da noite a magicar e a procurar compreender que passes de bailado foram aqueles que levaram os homens de goodison park a encolher-se e a perder o norte. E o mais certo é que depois adormeçam de novo por dentro de um pesadelo que é feito de memórias da perfeição ofensiva da equipa de lisboa. Porque a magia costuma ter sobre as pessoas esse efeito que é intrínseco à própria definição do termo: uma espécie de entorpecimento deslumbrado. Os de liverpool vinham para a segunda parte com um único golo de desvantagem. Ainda começaram por levantar a cabeça ligeiramente. Mas óscar cardozo marcou aos 47 minutos e voltou a marcar aos 48 minutos. E depois luisão deve ter achado que o melhor seria não deixar arrefecer o motor do ataque e voltou a meter a bola dentro das redes quase logo a seguir: corria o minuto 52. O meu amigo fala dos cruzamentos deslumbrantes de di maria ou das velocíssimas e exemplares transições ofensivas. Mas fala sobretudo da multidão de quarenta e cinco mil pessoas que assistia ao jogo e da força que podem ter quarenta mil pessoas a gritar ao mesmo tempo por algo em que acreditam e os leva a sair de casa para se juntarem a outros que partilham uma crença.

O MEU AMIGO retoma a conversa das eleições do passado domingo. E fala dos votos em branco. E procura convencer-nos da importância de refletirmos sobre o significado de um voto que não entra diretamente nas contas de nenhum dos seis candidatos. Mais de cinco milhões de pessoas ficaram em casa. Tinham os seus nomes inscritos nos cadernos eleitorais e resolveram ficar em casa. Mais de metade dos eleitores ficaram em casa e deixaram os outros decidir por cada um desses cinco milhões. Mas houve cento e noventa mil pessoas que deram baixa dos seus nomes nos cadernos eleitorais e votaram em branco. Não ficaram em casa. Não abdicaram do exercício de um direito que talvez só valorizemos verdadeiramente se um dia o não tivermos de novo e seja necessário começar a lutar do princípio para voltar a pertencer-nos. A verdade é que houve mais de cento e noventa mil pessoas que votaram em branco. E cento e noventa mil pessoas são mais de quatro vezes as pessoas que assistiram ao benfica a derrotar o everton num fim de tarde de outubro fascinante de comunhão e delírio. E o meu amigo relembra que o voto em branco não tinha outdoors nem comícios nem caravanas nem tempo de antena e que foi o único a não ser entrevistado pela judite de sousa. E que cento e noventa mil votos em branco devia querer dizer alguma coisa. E que talvez fosse importante discutir o significado disso no intervalo dos discursos eufóricos ou resignados.

MAS EU JÁ ESTAVA farto da conversa. Até porque votei naquele senhor da madeira que se chama qualquer coisa coelho e o caso começava a fazer-me prurido; porque só então discorri que houve mais votos em branco do que no meu candidato-revelação.


Publicado no Jornal do Algarve.

quarta-feira, janeiro 26, 2011

[era no tempo dos livros]

Há uma ave a única
a ave do silêncio
a que deixa nas páginas ímpares dos
livros de aventuras da gulbenkian
a frase indecifrável dos desastres
uma palavra de nenhuma sílaba
a reverberação da nuvem
iluminada
dos meses de junho.

E depois
nos degraus de casa
em vez das sombras dos complementos directos
uma fotografia guardada para os meses frios
um rosto contra a tempestade
a chuva demorada atrás dos vidros das janelas
de ser
quase
o verão.

E outra vez o silêncio
a pedra obscura
do que
não tem ainda
um nome.

Caminhos se desenham
na periferia
dos bosques
iluminados na distância de serem breves
os nomes antigos
as flores pretéritas dos
matos das encostas
uma estrela desenhada por
dentro das
constelações de
sílabas
contadas
pelos dedos.

Era no tempo dos livros em vez das florestas.

Era no tempo das frases
era no tempo dos títulos desenhados a tinta da china
nas capas dos romances
era no tempo da água/
dos canais de rega inscritos na aluvião
era no tempo dos primeiros mapas dos
primeiros nomes do mundo
o lugar a que pertencíamos
antes
do deserto.

Talvez só o silêncio
o rumor imperceptível e distante das nascentes próximas
a água descendo as escada inclinadas
dos substantivos.

E se respirássemos
ouvia-se o eco
de sermos tão jovens.

E então
sobre todas as coisas
sobre as facas dos talheres e a pedra da lareira
sobre a tábua da masseira e
as folhas do comércio do porto dos louceiros
recortadas vagarosamente
com as tesouras de costura/
os números dos ábacos
a aritmética
a narrativa
um verso
o único verso
como a única ave que não se desprende
de tocarmos a água dos açudes
como se fosse possível ainda
a invenção dos milagres.

A pedra
a que nem
conseguíamos dar um nome.

A pedra quase uma nuvem
a nuvem quase uma pedra.

E agora é tarde.

E nenhuma outra coisa
nos é
dado saber.

quinta-feira, janeiro 13, 2011

[a curva da estrada]

Éramos jovens e decidimos fazer a revolução. Mas para mudar o mundo era preciso começar por mudar a geometria da curva da estrada do rio onde por mais que uma vez nos espetámos regressando dos copos às três da manhã. A nossa primeira luta foi contra o presidente da câmara e depois contra a junta autónoma das estradas quando o edil civilizadamente nos explicou que a via não era municipal. Escrevemos cartas. Mas a junta autónoma devia ser tão autónoma que não respondeu a nenhuma. Então fomos pessoalmente entregar uma petição exigindo a imediata intervenção no asfalto e nas bermas e a reposição das indispensáveis condições de segurança. Recebeu-nos um funcionário zeloso que não nos permitiu passar além dos bancos corridos de madeira da salinha de espera e nos despachou dizendo «bom dia» e que a petição seguiria os estabelecidos trâmites. Um ano passou e nem um oficiozinho da junta autónoma dizendo por exemplo «o assunto mereceu a nossa melhor atenção». Foi então que pensámos em meter uma bomba na escadaria das traseiras do edifício-sede acionando-a por controlo remoto no instante preciso em que o sr. engenheiro-diretor das estradas a subisse com a pastinha de calfe do despacho debaixo do braço. Mas alguém mais avisado propôs a alternativa de pedir-se mas era uma audiência no governo civil e resolver-se logo o assunto. Pedimos a audiência. Quatro meses depois fomos recebidos. E o senhor governador assegurou que tomaria boa conta do processo e que não haveria de passar muita água por baixo da ponte até que a curva da estrada tivesse o perfil corrigido. E a verdade é que decorridas poucas semanas um ofício com os melhores cumprimentos do chefe de gabinete do governador civil explicava que o assunto havia sido remetido ao cuidado do sr. secretário de estado dos transportes. Mas nessa altura já a revolução não podia contar com o entusiasmo inicial destes seus tão fervorosos membros. Até porque o armando tinha ido para tancos cumprir o serviço militar. O luís alberto emigrou. O mendes arranjou emprego numa multinacional e passava o tempo a viajar. A teresa entrou em engenharia civil. Encontrávamo-nos cada vez mais espaçadamente e começávamos a sentir a estranha sensação de faltar-nos espaço para mudar o mundo e construir os alicerces de uma sociedade nova. O tempo correu e a curva da estrada ainda lá está sem ninguém lhe bulir. Não somos velhos mas é como se tivéssemos envelhecido mais depressa do que o tempo que foi passando por nós. O luís alberto tem uma empresa de construção civil nos estados unidos e regressa de dois em dois ou de três em três anos. Eu abri um restaurante. O mendes deixou a multinacional e trabalha agora por conta própria em consultoria financeira. O armando morreu num acidente de automóvel. A teresa meteu-se na política e é actualmente secretária de estado dos transportes. Às vezes penso em telefonar-lhe. A lembrar-lhe que está nas suas mãos resolver o velho problema da regularização do perfil da curva da estrada do rio. Mas o tempo passou. E eu receio que a teresa ainda haveria de rir-se na minha cara se eu tivesse a ingenuidade de lhe recordar o nosso sonho antigo de arranjarmos uma curva da estrada e depois mudarmos o mundo.


texto publicado no Jornal do Algarve.

quinta-feira, janeiro 06, 2011

[dizíamos]

Era no tempo da literatura
dizíamos «a água dos tanques»
e ficávamos à espera da reverberação das cinco sílabas
ou cortávamos vagarosamente
um ramo
da árvore dos significados.

[no tempo dos poemas]

Deixávamos as moedas no carril e ficávamos à espera a olhar com o fascínio de quem é surpreendido num fim de tarde pela presença de naves alienígenas num espaço de silêncio e rarefacção a ver as rodas metálicas do comboio a espalmá-las até ficarem assim nas mãos em concha de um de nós como se tivéssemos recolhido enfim a prova irrefutável dos milagres. Foi/
há tantos anos/
a senhora da bandeirinha vermelha perguntava se nunca tínhamos visto um comboio/
lembro-me de ser no tempo dos poemas/
um verso podia ser também a moeda espalmada nos carris da estação do caminho de ferro de Vidago/
tudo se misturava na mesma nuvem volátil de irrealidade e sobressalto.

terça-feira, janeiro 04, 2011

[depois de muito tempo]

Depois de muito tempo sem escrever um poema chego ao largo e penso em voz alta/ «quantas vezes este largo e estas ruas entraram nos meus versos». Nunca houve outra razão para deixar perguntas em papéis de acaso/
cortando as linhas como se existisse uma imprecisa melodia nessa perplexidade de interrogar o mundo. E é mais uma vez o largo e estas ruas que vêm dar ao largo o que me leva a escrever depois de tanto tempo.// É verdade que hoje não há nenhuma pergunta para fazer. Mas também é verdade que não há razão nenhuma para fazer perguntas quando conhecemos as respostas e sabemos que nem ao poema/ é dado devolver o eco das antigas interrogações.