sexta-feira, julho 27, 2012

[o filme]



[um convite]

terça-feira, julho 24, 2012

[a ignição dos interesses]

é mais antigo o que vem da cinza dos incêndios
mapas que parecem mal desenhados propositadamente
contas dos ábacos trocadas umas pelas outras
discursos de navios de ouro destinados afinal ao
comércio dos naufrágios
e depois é isto a
discussão estéril sobre estratégias de combate
como se isto fosse uma guerra
como se as guerras não devessem resolver-se num
tempo anterior ao da deflagração
ao da ignição dos interesses

quinta-feira, julho 19, 2012

[Os críticos literários]

A luz subia os degraus e
parecia ficar exausta nas tábuas
de castanho da varanda. As mulheres
da casa adormeciam
dessa luz incandescente
e de deixarem enredados nos dedos
os fios dos novelos
de lã. De um a outro lado do vale
oscilavam apenas os
desajustados movimentos
das máquinas de rega. Era quando
os críticos literários elogiavam
a verosimilhança.
Mas as mulheres acordavam
e sobre as páginas dos livros não ficava
senão a marca imperecível
de um fio de lã
a desenhar num bastidor
os corações inusitados
das palavras.

[As festas do Senhor do Monte]

O parecer do meu avô era o
de que o vinho deixado no frigorífico
quebrava. Nas vésperas
do Senhor do Monte ia durante
a noite à ribeira e alinhava as garrafas
entre os seixos e as ervas
altas. A meio da manhã do dia seguinte
gostava de tirá-las da seira
de vime desviando os
fentos ainda húmidos e despejar
num copo de vidro esse
líquido vivo e ligeiramente fresco
que olhava à transparência. No último
sábado de Julho o calor agarrava-se
à pele e ficava durante
muito tempo poisado nos terreiros
de saibro. Depois da procissão
os peregrinos estendiam os liteiros
nas sombras do pinhal
enquanto não fosse o tempo
de se aproximarem dos coretos a
ouvir os metais e a percussão
das filarmónicas. O meu avô começava
por essa altura a ficar impaciente
e a insistir no regresso
a casa. E recusava-se a aceitar
as bebidas tiradas das arcas
frigoríficas cheias de gelo
com a certeza de
que o vinho e a vida e o amor
quebravam quando eram
aquecidos ou arrefecidos
por métodos artificiais.

quarta-feira, julho 18, 2012

[A água/ de ser evaporada]

O silêncio parece pronto
a explodir nos veios do volfrâmio.
Já nos lagares minúsculos
do cimo dos prédios se preparou
o sulfato das vinhas. O rumor
de pêndulo dos pulverizadores
mistura-se às folhas e aos ramos
como a única evidência de
que somos nós a passar
pelo tempo e a mover
os relógios das sombras. Muito
ao longe deslaça-se a água
de ser evaporada nos incêndios
das florestas. E é então
que as mães descem dos pátios
e correm e gritam a chamar as crianças
temendo que os tremores
de terra tragam à superfície
as súbitas raízes cor de
laranja dos álamos jovens.

terça-feira, julho 17, 2012

[Apenas mato e árvores]

Ergue-se entre caruma e a ondulação dos montes
que a distância vai deixando mais azuis
uma espécie de voragem
que parece impedir
a respiração. Apenas mato e árvores
e descendo para o vale os muros de pedra arrumada
a esconder pequenas hortas e os arames
das vinhas como fios lentíssimos
de água que o Verão se prepara
para transformar em nuvem
de horas. Pressente-se
na resina a labareda do ar.
O tempo parado à espera que alguém
corra nos caminhos de saibro
ou de muito longe se oiça de novo
o rumor descontínuo dos motores
das máquinas de feno
a queimar o gasóleo.

terça-feira, julho 03, 2012

[Comentários de alguns intelectuais a propósito do europeu de futebol]

Já vi gente de pouca instrução a falar
emocionadamente da Vénus de Milo
ou a esforçar-se por compreender os mecanismos
que nos permitem fruir um objecto
e passar a sentir além do que sentíamos
conscientes de uma nova experiência
que vem da descoberta desta
respiração assistida. E isso sei
 
que leva muitas pessoas sem especial instrução
a esforçar-se por procurar o instante
a partir do qual a fruição de uma
obra de Mark Rothko é já um outro lugar
além do lugar onde estávamos.
Também conhecemos todos
 
esses indisponíveis para a emoção estética
que chamam picassadas a
toda a pintura que não imita o real
como se a arte não fosse
exactamente o contrário: interrogar o real
a cada momento que passa.
O certo é que dos intelectuais haveria

de esperar-se uma outra disponibilidade
para o entendimento mais geral
da mecânica das artes: dos intelectuais
que não compreendem
que o futebol é tão belo como a Vénus de Milo
haveria de esperar-se
no mínimo a humildade do reconhecimento
dessa incompreensão ou dessa indisponibilidade
para aceder à emoção sobressaltada
de uma experiência nova: haveria
 
de esperar-se o reconhecimento
da distância que os separa das qualidades do objecto
e assim os impede de aceder
ao milagre de uma 
respiração mediada. Mas oh
 
nem pensar: muitos intelectuais
caem com uma simplicidade impressionante
nas armadilhas da vulgaridade
e do pior que fecha por dentro
as cápsulas estáveis do lugar
comum. E dizem coisas do género
 
tanta gente a morrer de fome
e a sociedade a idolatrar uns selvagens
cheios de dinheiro que não sabem fazer mais
nada do que dar uns pontapés na bola.
 
Estes mesmos intelectuais
ficam de pêlo eriçado
se os que morrem de fome
ou perdem os empregos
não atingem que um quadro de Paula
Rego inspirado na Madame Butterfly
seja vendido por oitocentos
e cinquenta mil euros em tempo de crise
ou que o retrato de Henrietta
Moraes atinja em leilão um valor superior
a vinte e cinco milhões. Aceito
 
que ao meu amigo
Adolfo lhe custe compreender o preço
que se paga por uma mulher assim enviesada
só porque Francis Bacon
a pintou: custa-me que um intelectual
não compreenda que há no futebol
uma arte feita de um conjunto
de várias artes
e que essa arte contemporânea vai
muito além da caricatura tão apressada
de uns ignorantes ao pontapé
 
na bola. Mas ainda bem que o preconceito
não anda apenas do lado dos que riem
da pintura abstracta
para se perceber que os artistas
e os intelectuais em geral
não são mais nem são menos
do que um cavador de enxada
ou do que um alfaiate meu conhecido
que escondia a sete chaves
os moldes de pano cru
para que não lhe copiassem a arte
de fazer um fato de caxemira.